AcorDo Rei – a quinta matriz.
Se tomarmos o título da exposição como um anagrama, transpondo letras, separando trechos, trocando as ordens, teríamos conotações distintas para tratar de duas imagens pregnantes: a cor e o rei. De outro modo, a junção de partes nos leva à palavra “acordo”, trama, negociata. Assim, Isaque Pinheiro, artista português que tem na escultura sua principal expressão, chega ao Brasil trazendo-nos reflexões sobre o poder, a verticalidade de um signo, a imposta e rarefeita legitimidade de um monarca. Tal imagem carrega e manipula uma das mais valiosas cartas de um jogo.
Porém, o rei está muito distante da perfeição, quatro matrizes de madeira cedro reproduzem a carta do baralho, mas, no sistema CMYK, as cores azul, magenta, amarelo e preto nunca estão coadunadas em completude para a perfeita impressão. Esculpidas pelo artista, as matrizes sempre servirão para imprimir gravuras, nas quais uma ou mais cores tornarão a imagem do rei incompleta. Apenas em uma das provas que o artista coloca em destaque, vemos a carta completa, mas com uma dobra, na madeira, possibilitada por dobradiças, assim como acontece nas próprias cartas que se desgastam com o tempo. Nas palavras do artista: “só quando todas as cores políticas estão presentes no mesmo universo e se relacionam poderemos ambicionar ter um governante ou um governo pleno”. A cor do rei nos condiciona, inevitavelmente, para metáforas outras que ora se relacionam com a presença das cores dos naipes das cartas (espadas, ouros, paus e copas), ora pode nos incitar a pensar em etnicidades, o branco, o negro. Isaque Pinheiro escolhe, apenas, o naipe de paus que, nos interesses do artista, se aproxima da classe operária, dos trabalhadores rurais, diferente dos outros naipes que se relacionam à nobreza e à guerra.
Sabemos, como nos alertara Frantz Fanon que “a descolonização é sempre um fenômeno violento”[1]. Com isso, manter a democracia se faz tarefa, até hoje, carregada de complexidades. Tornar ampliadas as leis, muitas vezes, deixa contraditório o entendimento de que uma simples consanguinidade pode instituir um estado, ainda que de exceção, conferindo a um único sujeito a manutenção do comando de uma nação. E os cartazes das ruas, as pichações nos muros, a grita não nos deixam esquecer da ilegitimidade das representações políticas. Vemos um mundo avançar e retroceder, princípios de igualdade serem retirados, modificações nas relações de gênero e novos modelos familiares não conseguirem ser implementados. Vive-se na hipocrisia. E, como num jogo de cartas, tudo pode se reordenar. Colocar a maioria da população em um jogo equânime torna-se utópico. E Isaque se interessa em colocar os cartazes do rei em sequência como se estivéssemos diante de um parlamento. De modo recorrente, valorizam-se as cartas maiores que cortam as jogadas, com a força de um lance onde rainhas, reis e ases levam todas as cartas subalternas quase como empregados, escravizados, contingente diminuto e diminuído.
Na produção de Isaque Pinheiro, destaca-se o acertado interesse por objetos e imagens próximas, banais e a transposição das mesmas em materiais inusitados. Em trabalhos anteriores, o artista fez de um capacete, uma escultura de mármore, couro e metal, de uma peça de carne, um objeto de mármore, de uma asa, uma mala de couro. Ou seja, a proximidade de uma imagem comum, as cartas de baralho, é a imediata relação que podemos vislumbrar em AcorDo Rei. Se buscarmos os modos da manufatura, vemos um alto grau de virtuosismo, principalmente nas tramas (como arabescos bizantinos) presente na matriz do verso. Isaque escolhe matrizes em madeira e a xilogravura como peças que compõem a exposição. A violência da imagem do rei pode ser repetida no próprio processo de escultura, sempre agressivo, com desbastes, cortes, secções. De outro modo, o Rei está gasto, pela ausência de uma ou mais cores do sistema CMYK e com falhas nas tintas de impressão estimuladas pela própria técnica, em que os veios da madeira sempre estão presentes.
AcorDo Rei mostra, então, gestos e imagens repetidos que buscam a regularidade impositiva, modular, grandiosa, opressora, mas que, ao mesmo tempo, se interessa pela quinta matriz, aquela que mostra um mundo ainda a ser descoberto, na esperança de outras vozes, outros tempos, novos tempos virados do avesso.
Marcelo Campos, curador.
[1] Fanon, Frantz. Os condenados da terra, Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p. 51.
Wilson Lazaro Olá Isaque. É a primeira vez que realiza uma exposição em Belo Horizonte, qual será a sensação com essa mostra?
Isaque Pinheiro É importante para qualquer artista alargar o seu público.
E Belo horizonte sem dúvida que faz parte do mapa da arte contemporânea. Imagino que seja uma boa sensação, mas dependerá da reação do público, como sempre.
WL Esta exposição já passou por uma instituição como o Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Você a criou para aquele espaço, certo?
IP Sim! Neste caso, esta exposição foi imaginada e produzida para o Paço Imperial e principalmente para o público brasileiro, mas trazendo também a realidade de onde venho.
WL Visitando sua exposição, tive sensação que o público nunca fica do lado de fora, ele sempre é afetado emocionalmente, de uma maneira muito visceral, olhando e disfrutando das obras. Como você constrói esse pensamento e as obras para essa mostra? Conte-nos um pouco sobre como você produz .
IP Raramente faço alguma obra apenas pelo prazer de a fazer (também, mas não só). Praticamente toda a obra que faço, faço-a para o público! Acho que foi uma forma que encontrei desde muito cedo para captar a atenção dos demais e ser acarinhado ou, pelo menos, não ser ignorado. Não me importo de passar despercebido, mas detesto ser ignorado e, por isso, fico contente com essa tua opinião de que o público fica afetado emocionalmente. Nada melhor para me entusiasmar a produzir o próximo trabalho.
Mas falando do processo que deu origem a esta exposição… digamos que nas muitas gavetas que tenho na cabeça existem milhares de ideias perdidas, algumas para todo o sempre, ideias que vou atirando para dentro das gavetas de forma completamente caótica. Quando me surge a proposta de fazer uma exposição em determinado lugar eu começo a abrir gavetas e a vasculhar. A determinada altura surge uma gaveta que tenho a nítida sensação que faz sentido no contexto da exposição. Mas não paro por aí, continuo a abrir gavetas até à exaustão, até ter a sensação que, de fato, o conteúdo de tal gaveta era a mais adequada. Depois volto a essa gaveta e começo a analisar tudo o que lá está. Depois de alguns ajustes há sempre um momento em que as ideias, os contextos, os conceitos, tudo bate certo e se coze como uma roupa perfeita para determinado espaço e momento.
Neste caso concreto havia o Paço Imperial enquanto casa real, eu que sou Português, o Brasil a escolher um governo com base num mecanismo democrático, etc., etc.
Uma vez encontrada a exposição certa tenho que a pôr em prática porque, embora eu já a tenha na minha cabeça, os outros ainda não a viram. Tenho que lançar as mãos à obra, com todos os problemas técnicos inerentes, que passam a ser uma obsessão.
Li um livro interessantíssimo cujo título é “O Artífice” que fala da relação entre o fazer e o pensar. Há um momento em que o seu autor, Richard Sennett, foi questionado sobre qual a intuição que o orientava enquanto escrevia o livro, este respondeu “Fazer é pensar”, conceito que compactuo vivamente porque à medida que vou produzindo, quase sempre com as minhas mãos, as obras que imagino, vou desenvolvendo conceitos, formas e novas peças. Todo essa paleta de novas possibilidades serão em grande parte postas em gavetas mais acessíveis, porque é bastante provável que volte a abri-las para me empenhar em desdobramentos das obras anteriormente feitas. Trata-se de pensar com as mãos.
WL A meu ver, suas obras, nessa exposição, tem a natureza geométrica das cartas, dos desenhos que merecem ser lembrados. As formas geométricas costumam ser associadas a uma razão moderna. Ao se apropriar desses desenhos, inseri-los na esculturas, nas gravuras e, por fim, nas dobraduras em obras, você consegue instaurar uma nova geometria. Como você vê isso?
IP De facto estes desenhos têm um caráter modernista e usei-os como matéria prima para construir ou destruir um futuro apoiado em imagens do passado. Acrescentar e/ou entrar em rotura.
Este vai e vem é típico meu! Faço uma matriz que não é só uma matriz mas também uma obra, que serve para imprimir uma gravura que seria a obra, mas que pode ser vista como base para construir uma escultura que pode ser apenas parte de uma outra coisa e voltar a ser matriz, etc., etc., etc. Talvez essas pescadinhas de rabo na boca seja uma das coisas que caracterizam a minha obra.
Claro que, no meio destas manobras de destruir, construir, acrescentar, retirar e por aí a fora, novas geometrias aparecem.
O critico português Bernardo Pinto de almeida num texto sobre o meu trabalho e focando-se num determinado trabalho, disse que os meus procedimentos, “(…)demonstram de facto a consistência e o alcance de um projeto de criação que hoje é inseparável de uma nova paisagem artística. Uma paisagem que trabalha, cada vez mais, sobre a tentativa de construir imagens sobre a própria ruína das múltiplas imagens da arte.”.
WL As cartas se tornam autorretratos, figuras de reis e rainhas… Você, desta vez, opera em um registro tanto estético quanto ético dessas imagens. Quais foram as influências para realizar essas obras, seria um link com o poder e a arte?
IP Costumo classificar-me, entre outras coisas como “animal de oficina” e tento compreender a vida através de questões práticas que me ajudam a compreender questões sociais e até mesmo sociológicas. Sei que um material duro que não verga, sujeito a determinada pressão, quebra, ao contrário de um material flexível. Esta realidade pode ser aplicada a uma pessoa ou sociedade. Facilmente quebramos um palito, mas se juntarmos muitos dificilmente o quebraremos. Isso também se aplica ás pessoas. Tento compreender as coisas desmontando-as e voltando a montá-las para entender como são feitas e como funcionam. Ao olhar para a imagem de um rei numa carta de jogo compreendo que é composta de várias cores. Ao separar cada uma dessas cores consigo entender melhor qual o espaço que cada uma delas ocupa no todo. Quando volto a juntá-las compreendo-as melhor e se uma delas não estiver presente, tenho noção da sua falta, de como seria se lá estivesse e se gosto mais desta ou daquela composição.
Tudo isto pode ser visto como links entre o poder de conseguir ver as coisas e a arte de conseguir gerar dúvida, inquietação, provocar discussão e talvez tirar conclusões.
WL Os materiais e suas manufaturas imprimem outras possibilidades de leitura às obras: as cores resultam da edição de elementos das cores primárias, incorporadas ao processo como forma significante nas obras, como observo em seu processo de criação. Vejo que você não é um artista de ideia, é um construtor de uma obra. Como você percebe isso?
IP Tenho pouca distância de mim para conseguir ter consciência disso. Entendo que sou um artista que põe ideias em prática sem se preocupar com estilos, tendências, etc.. Vejo a Arte como lugar de liberdade e tenho receio que a preocupação de criar uma obra enquanto expressão de carreira, me possa retirar essa liberdade. Mas gosto de pensar que pode ser essa liberdade a denunciar a minha obra.
WL Caro Isaque, o uso das cartas como elemento da construção da forma também ganha destaque na exposição. O que vemos são as cartas, que estão sempre sendo jogadas no mundo, fazendo parte dele, aqui apropriadas como matéria e pensamento para arte, para diversão, para surpresas. Arte por um fio de apreciar e emocionar… isso traduz bem sua obra?
IP Neste momento… sim!
Wilson Lazaro, diretor da galeria dotART
Rio, 27 de outubro de 2018.